quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Um Apólogo (a partir de um conto de Machado de Assis)

A agulha e o novelo estavam a tecer um provocante diálogo, cada qual alardeando a importância de si mesmo no meticuloso processo de confecção do vestido. No que a agulha furava o macio pano da suntuosa vestimenta, um novo argumento lhe vinha para enaltecer seu papel. Ao que se opunham, por natural seqüência, os arremates da linha, sempre precisos e na medida certa. Espetado muito próximo dali, quem sabe esquecido pela circunspecta costureira, um atento alfinete a tudo observava. Sendo o único dos três a possuir cabeça, reconhecia no confronto uma inútil causa. Não haveria vencedores, sendo ambos, agulha e novelo, meros trabalhadores necessários ao fim almejado.

O alfinete olhava a agulha com certo desdém. Pensava com seus botões: “criatura esquisita essa agulha. Não tem cabeça, mas sim um buraco, por onde passa qualquer linha, sem sequer pedir licença. Como deve ser horrível existir para receber, a todo momento, a visita indesejada de tão pedantes criaturas. Sim, porque os novelos são naturalmente arrogantes, mais ainda os de renomada procedência, apenas requisitados para ornar as festas da corte, com seus barões e baronesas. Pobre agulha. Não vê que é apenas um reles burro de carga – ou seria mula? -, a serviço de objetivos alheios a sua vontade? Melhor é ser alfinete. Onde me colocam, fico. Mais não faço. Nem quero.”

E seguia nosso amigo, passando a alardear para si mesmo os benefícios de ter cabeça: “sou privilegiado. Não tenho apenas cabeça. Eu penso! E porque penso, não me sujeito. Parado no meu canto, passo a vida a elocubrar a respeito dos mais variados temas. Elaboro teses e vou aparando, aqui e ali, refinando o raciocínio até não haver sobras. Esta é a minha costura, inacessível para novelos e agulhas, perdidos em trabalhos comezinhos. Discutam eles os assuntos pueris! Jamais chegarão ao nível do meu conhecimento”. O alfinete continuaria a discorrer sobre seus atributos, não fosse surpreendido por um evento banal, mas de enorme repercussão, se assim não é a vida...

Apressada em seus afazeres, a experiente costureira, na ânsia de impedir a queda do novelo ao chão, segurou por reflexo a linha, que foi se desfazendo, toda garbosa. No caminho de sua curta viagem até o piso, a linha, aproveitando-se do acidente, acabou por roçar, meio por descaso, meio por malícia, a cabeça do pensativo alfinete. Que dizer do sucedido? Por não mais ter o alfinete condições de assumir a narrativa, faço o relato do ocorrido.

A maciez daquele toque, nunca antes sentida, teve o efeito de um poema, a revelar-se mais pelas reticências que pelas palavras. Os pensamentos estancaram. Todo o corpo frágil da esquelética criatura viu-se subitamente invadido. Se fosse gente, seria o fogo a queimar. Mas, sendo alfinete, falo de um friozinho, não tão ínfimo que se despreze, nem tão encorpado que amedronte. Apenas o suficiente para aguçar a curiosidade e sentir... saudade. 

Tão surpreso estava o alfinete, que nem percebeu quando foi novamente posto na caixinha da costureira, tendo por companhia uma acabrunhada agulha. Ainda lembra que sustentou, por ordens do orgulho, o velho discurso de sua natural condição de não abrir caminho para ninguém, ficar onde o espetavam. Mas as palavras eram apenas eco distorcido do que já não mais sentia. Que inveja da agulha! Ela que, ocupada em diminuir as virtudes da linha, não percebia o inebriante pas-de-deux de que participava, movido a roçares graciosos, sussurros inevitáveis, e ainda fazendo arte. Sentiu-se pequeno olhando por esse prisma. Sua cabeça, antes motivo de orgulho, parecia um inclemente fardo. Alteradas as lentes, porém, estava mais vivo do que nunca. A partir desse dia, trocou a retidão da razão pelas curvas da esperança. Só desejava reviver aquele frisson, gostoso que só. Dito em outras palavras: o que nosso amigo alfinete mais queria era perder inteiramente a cabeça.

Pedro F Gabriel

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