“Eu tenho uma coisa pra te contar”. Pelo jeito como Deise falava, era coisa séria. Muito séria. Da sua voz parecia sair pus, eu quase podia sentir o cheiro da ferida em estágio avançado de infecção, daquele jeito que só amputando o membro pra salvar a alma. E a expressão nos olhos... Meu Deus! Aquele olhar de cachorro perdido trazia todo o desamparo do mundo, que um menino de apenas seis anos não deveria saber que existia. Mas eu sabia. Sentia. Sei lá. Desde muito cedo tinha grande afinamento com a dor do mundo. Se reparava alguém feliz, achava estranho. Até ficava feliz junto. Mas sabia que não ia durar. Pelo menos pra mim. O tempo só me confirmava a suspeita. Mas minha irmã não devia achar isso. Volta e meia, lá vinha ela com alguma revelação que virava pelo avesso toda a ordem caótica dos meus sentimentos. O que seria agora? Ela prosseguiu. Falava devagar, as palavras tremendo pra sair: “Há muito tempo que eu queria te dizer isso. Mas só tive certeza agora. Eu ouvi mamãe e papai conversando no quarto. Eles não sabem que eu escutei tudo. Falavam de mim”. Deise fez uma pausa maior e eu já fazia beicinho, chorando por antecedência. “Eu não sou sua irmã. Fui deixada na porta de casa, num pequeno berço, bem pobrinho. Mamãe e papai me adotaram por pena”. Eu não conseguia dizer nada. Nem lágrimas saíam porque desde pequeno percebi que quando a dor era muita, a expressão do sentimento era freada de forma muito sutil, como para eternizar o momento. Podia até parecer indiferença para os outros. Mas era só estoque de infelicidade. Masoquismo a conta-gotas. E minha irmã parecia saber disso. Ela continuou: “Agora, sinto que não posso mais ficar aqui. Preciso encontrar meus pais verdadeiros. Vou embora hoje de madrugada, já fiz minha mala. Eu queria te dizer isso porque você é a pessoa que eu mais amo nesse mundo, e nunca mais vou te esquecer. Guarde com você essa fotografia. E sempre que estiver triste, saiba que eu estou contigo”. Segurei a foto como quem suporta, sozinho, o peso de um caixão. E ainda que desconfiasse de que tudo pudesse ser mentira, não conseguia – e nem sabia – convencer meus sentimentos disso. Afinal, alguém declarava seu amor por mim! Eu, que me achava tão inadequado e esquisito naquela família. Como deixar ir embora alguém que me amava tanto? Como se estivesse em transe, olhei pra minha irmã e disse ameaçadoramente: “Ou você me leva junto ou eu me mato.” Não me lembro do impacto que minhas palavras lhe causaram. Se acreditou nelas, satisfeita com o pavor que me causou, ou se insistiu ainda um pouco mais com o seu exercício de sadismo. O fato é que estávamos na parte de cima de uma das rampas que se estendiam pelo quintal de nossa casa, como se fossem passarelas, só que ladeadas por grades de ferro com desenhos em formato de rosas. Muito lindas. Essa, especificamente, finalizava próximo a uma parede de vidro, desenhada com grandes losangos, que separava a garagem do quintal. Falei pra Deise que se ela não caminhasse exatamente ao meu lado, eu desceria num embalo só e me jogaria de encontro ao vidro. Não a queria longe de mim. Nem um passo à frente, nem atrás. Seus pés teriam que estar milimetricamente alinhados aos meus, pois qualquer descompasso significaria abandono para mim. Ali, vi que o jogo virou. Minha irmã, a essa altura, já contara que tudo fora invenção dela, que éramos irmãos de sangue, que estava só brincando. Ah, mas que me amava muito mesmo. Eu não duvidava das suas palavras, mas, por uma estranha razão, quis continuar o jogo. Gostei de me ver no controle da situação. Pensava como um diabinho, falava como um anjo indefeso: “Não, seu pé está um pouquinho atrás”; “piorou, agora seu dedo mindinho está um tiquinho à frente”. Isso durou um tempinho. Deliciei-me ao ver minha irmã verdadeiramente atordoada com o que eu pudesse fazer, ajeitando a toda hora os pés para evitar que aquele menino desesperado fizesse uma besteira que a deixasse em maus lençóis com nossos pais e com sua consciência, acho que nessa ordem. Eu experimentava o álibi das crianças inocentes. Entre a ameaça e a ação, pouco tempo se passou. E eu, decidido, corri em direção ao vidro. Na minha cabeça, tudo era muito simples. Corria por mais ou menos 15 metros – acho que esse era o tamanho da rampa – e no pequeno pedaço horizontal entre o final da rampa e a parede, frearia, de forma que pararia próximo ao vidro. De lá, olharia com um sorriso triunfante para a cara certamente apavorada da minha cruel irmãzinha. Estaríamos quites, então. Mas assim não aconteceu. Vontade em excesso, corri demais. Cálculo mal feito, freei de menos. Só vi meu corpo atravessar um dos losangos do portão de vidro e parar, cheio de cacos, do outro lado. Deise ficou em pânico. Meu pai foi chamado às pressas e me levou ao hospital. Segundo contam, entregou-me aos enfermeiros e...desmaiou. Sangue demais. Disso tudo, acreditem, resultou apenas uma cicatriz, discreta, no supercílio esquerdo. E a certeza, de toda a família, de ter entre eles um suicida em potencial, o que me trouxe muitos benefícios, afinal, como eles falavam: “melhor fazer o que ele quer. Vai que esse garoto tenta se matar de novo. Imagina o que vão pensar da nossa família”. Até hoje sinto que eles têm um pé atrás comigo. Só eu sei que não foi bem assim. E já é o suficiente.
Pedro F Gabriel
coitada de Deise....
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