O meu nome é Kenya e antes que vocês pensem que estão falando com um país ou uma mulher, vou logo antecipando: sou uma cadela. Não, não se trata de figura de linguagem, - das mais infelizes, por sinal - para definir uma mulher cretina e desavergonhada, com crise de consciência depois de ter aprontado todas pela vida afora. Sou, MESMO, uma cadela. Da raça Yorkshire.
Para começo de conversa, não sou engraçadinha, bonitinha e nenhuma outra “inha” da família das melosas que passe pelas suas cabeças. Nunca fui a melhor amiga do homem, no caso, da mulher. Não que eu não gostasse da minha dona, que fique bem claro. Mas não perdia muito do meu tempo – quase sempre inútil – sofrendo por ela. Aliás, esse negócio de cachorro ser o melhor amigo do homem é invenção de algum lesado. E o pior é que os cachorros entraram na onda. As cadelas, nem tanto. Eu, pelo menos, definitivamente, não.
Os Yorkshires têm carinha de lobisomem bonzinho – principalmente quando filhotes -, são todos peludinhos e com as barriguinhas rosadas e salpicadas com graciosas pintinhas pretas. Fofo, não? NÃO!! Yorkshire não é beagle, aquele cão idiota com cara de songa-monga, sempre pronto pra pegar o osso jogado pelo dono; também não é shih-tzu, aquela mutação transgênica e disforme do já horroroso pequinês, com aquela língua de debilóide pendurada, sempre cansado por nada; muito menos é um chihuahua, que apesar da fama de bravo, treme feito um maricas ao menor sinal de perigo. Yorkshire não é bichinho de estimação. Yorkshire tem alma de doberman e cérebro de pitbull. Mas o corpo é de uma pulga gigante, que sabe-se lá por quê, cativa. Sentiram o drama?
E como se não bastasse, tenho um peculiar probleminha que agrava ainda mais o meu carma. Quando filhote, eu sofria de um deslocamento nos quadris que me fazia sentir dores horrorosas, só aliviadas muitos anos depois, por uma cirurgia de alto risco, suportada com valentia. Ocorre que a anta que me operou deve ter mexido em algum nervo que liga a boca ao cotoco do meu rabo. Assim, toda a vez que eu lato, principalmente quando estou irritada – ou seja, quase sempre -, o rabo abana, dando a impressão de felicidade. E não adianta eu querer morder porque, por alguma razão, o movimento do rabo tira a força da boca. O pior dos males é que minha dona achava que eu estava “fazendo festa”, como ela mesma dizia. “Olha! A Kenya está fazendo festa pra você, Letícia”, “Ah, ela está tão feliz, é outra cachorra depois da operação. Faz festa, Kenya. Faz, lindeza da mamãe”. Eu não sou lindeza de ninguém! E não sou animadora de festas! Que vontade de gritar. Mas quanto mais gritava – quer dizer, latia -, mais feliz parecia aos olhos dela.
Meu calvário não parava por aí. Percebendo que eu estava curada das dores, minha dona passou a me levar constantemente para dar voltinhas pelo calçadão. O problema é que cada passeio parecia um evento. Para ela e para mim. Eu, que até então só tinha uma roupa, usada apenas nos raros dias de frio, passei a ter um enxoval completo. Com direito à botinha combinando com tubinho básico. De oncinha. Credo! Será que ela não percebia que eu não era gente? E nem Barbie?? Quer se fantasiar, que vá sozinha! Agora, me arrastar pra dentro desse circo dos horrores...O mais triste era o focinho da cachorrada nas ruas, absolutamente infeliz. Tinha uma cadela cuja dona, fã de cinema, costumava comprar suas roupas ao sabor do filme da moda. Resultado: a pobre pug, de nome Martha Rocha - sem comentários –, passou a alternar dois modelitos: um dia vestia “cisne branco”; no outro “cisne negro”. Deplorável.
Só tinha uma raça que parecia se sentir à vontade nesse teatro de absurdos. Raça esta que acredita de patas juntas que está no último estágio para se tornar humana. Falo daqueles bichos ridículos, com penteados esdrúxulos e soberba de sobra. Eles mesmos: os poodles. Só de falar o nome já sinto arrepios. Tinha uma, Priscila, que passava por mim fantasiada de Marquesa de Santos ou sei lá o quê. Pois teve uma semana em que me apareceu de Sacerdotisa Imperial. Detalhe: Ela fazia o maior esforço para andar só com as patas de trás, como se fosse...gente. Onde já se viu? O meu projeto de rabo parecia uma hélice em pleno movimento. Quase levantei voo de tanto ódio. E minha dona às gargalhadas, em júbilo com minha pretensa felicidade. Se ela soubesse...
E os seriados na televisão? Com a TV a cabo, os mortos todos ressuscitaram. Lassie, Rin Tin Tin e outros mais. Que ódio desses cachorros adestrados e heróis. Cambada de vendidos. Quantas vezes eu sonhei que a Lassie morria eletrocutada e aqueles pelos bem tratados a creme francês se transformavam em incensos, soltando finas fumaças? É bem verdade que ela já morreu faz tempo, mas a maldita TV está aí pra trazer os fantasmas de volta. E pior é que tem cão que assiste a essas porcarias e até sente inveja dos “astros”.
Pelo menos de uma coisa não posso me queixar: minha dona nunca quis me cruzar. Melhor assim. Não suportaria outra bola de pelo por trás de mim, me encostando aquelas patas e outras partes sebentas, e se movimentando de forma desajeitada. Nem pensar! Pior de tudo é achar que eu quero cruzar só porque estou no cio. Mentira! O cio é uma punição da natureza. É o sinal verde dos hormônios, mas quem disse que a alma quer? E se eu bobeasse, ficava aquela cachorrada toda em volta, cheirando, querendo me lamber. Até a tonta da cadela da vizinha se achegava. Eu, heim, minha filha! Aqui não!
Quando eu lembro do Luiz Paulo, filho da minha dona - para não dizer filho de outra coisa -, querendo convencê-la a me cruzar com um cão abestalhado do prédio em frente. Poodle, ainda por cima! Falava que podia ser uma experiência genética interessante. Que fosse ele cruzar com um porco-espinho, pra ver o que acontecia! Insuportável esse rapaz. Só pensava nisso! Até eu ficava com medo quando estava perto dele. Uma vez ficou me acariciando de um jeito estranho, a mãozinha meio mole, perdida. Eu controlei o meu rabo e não tive dúvidas. Nhac na mão dele. Saiu até sangue. Adorei a sua cara de ofendidinho. Sujeitinho asqueroso. Visitava a mãe por obrigação. Já chegava de costas. E a boba era toda carinho, fazendo comidinha, cafezinho. Sei... Tinha é que internar esse tarado!
Pior que ele, só Letícia. Garota estranha, enigmática, taciturna. Só se vestia de preto. Diziam que era emo. Estava mais pra demo, isso sim. Não sei por quê, mas tinha uma implicância comigo. Falava que minha energia não era boa. E eu lá sou da Light pra entender de energia? Uma inútil, isso sim é o que ela era. Quase trinta anos na cara e nunca fez algo que prestasse. Só ficava explorando a mãe, que tinha mais é que mandá-la procurar a sua tribo.
Mas quem mudou de tribo foi minha dona, coitada. Infarto fulminante. Confesso que sofri, afinal, não sou insensível. A morte dela mudou toda a minha vida. Ou vocês acham que Letícia ia me suportar naquela casa, me tratando como irmãzinha mais nova? Cretina! Disse que nem com defumação vinte e quatro horas conseguiriam limpar meu campo energético. Que minha aura estava cheia de obsessores e outras maluquices que desequilibravam o ambiente. Chegou a me oferecer para o doente do Luiz Paulo. Imagina! Ainda bem que ele não aceitou.
Decidiram me enviar para a Suípa, um misto de orfanato e asilo para cachorros rejeitados. E cá estou eu, aguentando a cara desses infelizes, cada um procurando, a sua maneira, seduzir os visitantes que passam por aqui. Sinto pena da mesquinhez canina, desses focinhos de desamparo cheirando a queijo bolorento. Eu é que não me vendo! Anteontem veio aqui um casalzinho bem jovem, ela Ednanci e ele Cleovaldo. Com esses nomes só podem ser de família suburbana porque gente normal não faz uma maldade dessas com os filhos. Eu dei meia abanada de rabo e só. Eles, bêbados de ternura um pelo outro, ficaram de pensar. Hoje apareceu um casal oriental. Chineses, acho eu. Estranhíssimos. Se bem que até cheguei a me empolgar, afinal comida chinesa é aquela mistureba que animal adora. Depois me lembrei que chinês faz churrasquinho de cachorro e come de lamber os beiços. Então, fiz minha pior cara pra ver se assustava. Não é que eles acharam bonitinho e prometeram voltar amanhã? Eu não quero acabar minha vida no espeto! Pensando bem, vou torcer para Ed e Cleo – como o casalzinho açucarado se trata na intimidade - voltarem antes dos chineses. Se isso acontecer, já preparei todo o arsenal de fofices que os cães usam para impressionar. Eu sei que isso vai contra a minha índole. Mas sobrevivência é tudo. E, pensando bem, já estou velha demais para bancar a orgulhosa.
Pedro F Gabriel